É costume de muitos fazer um post nesta época do ano sobre como foi o período e o que se esperar do próximo ciclo, independentemente do campo do conhecimento a ser explorado. No que diz respeito a comunicação, tecnologia e comportamento, muitos temas poderiam naturalmente ser abordados – mesmo que quase sempre chegássemos no mesmo lugar, que agora é tudo com Inteligência Artificial (IA). Mas curiosamente foi uma publicação que recebi no Instagram hoje falando sobre Spotify que me trouxe o insight para escrever umas linhas sobre o que vi e o que acho que vem por aí. Foi mal, OpenAI e afins, nem tudo é IA…
O post em questão:
Economizando um clique: Kyle Chayka comenta na New Yorker sobre a sua decisão de parar de usar o Spotify. Ao avaliar a sua experiência, reclamar no antigo Twitter e encontrar algum eco – geralmente duas ou três pessoas achando a mesma coisa, mas que no relato virou “dúzias e dúzias” – o rapaz concluiu que o algoritmo é que dita as regras das músicas que ele deve consumir e que era a hora de procurar um novo serviço em que ele pudesse exercitar a descoberta de novos sons, o que ele mesmo define como um comportamento superior como ouvinte. E aí conclui que era a hora de deletar o aplicativo e “encontrar um novo app que seja desenhado em torno do consumo de música que desejo”.
Depois de me causar alguma inquietação, identifiquei neste post algumas camadas que podem resumir bem este ano e o que vem por aí nos próximos. Vamos começar a descascar esta cebola?
Em 2025, não temos mais direito à inocência
A conclusão de que o serviço tenta empurrar goela abaixo o que as pessoas devem consumir em detrimento da qualidade do conteúdo consumido pode ser aplicado a praticamente tudo o que é mais popular na Internet. Não é apenas o Spotify: qualquer outro serviço de streaming, qualquer rede social, qualquer outro ponto de consumo de informação hoje tem um mecanismo para ofertar aquilo que engaja e mantém o usuário por perto, não necessariamente o que é melhor ou que devesse ser descoberto. E isto não é nenhuma novidade.
Chayka questiona como vai ficar o consumo da unidade álbum dos artistas se todo mundo agora consome músicas dentro de playlists confeccionadas automaticamente. E o que eu tenho a dizer é que este questionamento está, no mínimo, seis anos atrasado. Sim, em 2018, a já chamada spotifização do consumo de música já apontava que o álbum passava a não fazer mais sentido para os ouvintes, que poderiam pinçar dele suas favoritas, empacotar numa playlist ou deixar o serviço fazer o trabalho por elas e solenemente ignorar o resto.
E quem for reclamar de algo semelhante sobre as séries e filmes que são produzidos, sobre o tipo de colunista que os grandes jornais contratam ou sobre a rede social anteriormente conhecida pelo nome anterior ter se tornado um ambiente tóxico invariavelmente cairá no mesmo lugar: é a questão do engajamento que determina o que vamos consumir. Então em parte a culpa é sim de como funcionam os algoritmos. Mas também é uma parte nossa.
Somos nós que somos preguiçosos até quando queremos ser os pioneiros das descobertas musicais, como o colunista da New Yorker. Encontrar um outro método de garimpar música, como voltar aos sebos e vinis ou apostar em distribuição peer-to-peer (que nem sempre é sinônimo de pirataria)? Não, “vou procurar outro serviço de streaming”. Qual, eu pergunto. YouTube Music? Apple Music? E eles funcionam de alguma maneira diferente?
Essa inocência de acreditar que os problemas causados por serviços de conteúdo da Internet adquiridos ou transformados em grandes corporações serão sanados por outros serviços que podem ser adquiridos ou transformados em grandes corporações não tem mais espaço nos dias de hoje. Ou não deveria ter. Esta ilusão de que um serviço vai resolver problemas e promover o bem à humanidade deve ser tratada como um deboche, uma sátira, um chiste.
Em 2025, deveríamos desconfiar mais de nossas câmaras de eco
“Ao reclamar no antigo Twitter, encontrei dezenas de pessoas reclamando sobre o mesmo ponto e assim validei minha questão”, disse alguém invariavelmente equivocado.
Se já não temos direito à inocência quanto à maneira em que informações chegam até nós, deveríamos ter um pé atrás no que diz respeito a tendências comportamentais baseadas em observação limitada das redes.
Aqui no caso do artigo é uma questão até menos séria, ele só procurou validação de seu sentimento de que havia algo de podre no reino da Dinamarca (ou seria Suécia?), mesmo que alguns anos atrasado. Mas a cada dois anos temos, por exemplo, eleições no Brasil. Há pessoas que seguem acreditando que a amostra do que elas veem nas redes é um retrato fidedigno dos sentimentos e anseios do país. E não estou falando apenas de pessoas que se informam apenas pelo WhatsApp, tá okey?
Validar comportamentos e tendências com exemplos nas redes vai fazer a gente validar todo e qualquer traço de comportamento, porque vai sempre haver alguém para servir de exemplo, como uma anedota. Não é cientificamente válido, mas ainda embasa montes e montes de textos jornalísticos, análises políticas e mercadológicas, fórmulas mágicas de gurus, dicas infalíveis de influenciadores e afins que seguirão levando meias-verdades a quem impactarem.
Toda virada de ano, eu pego estudos e relatórios de tendência dos mais diversos como parte do meu trabalho enquanto estrategista. Alguns são de entidades de pesquisa muito sérias. Outros são sim de observadores equivocados. O trabalho de separar o joio do trigo ajuda a pagar meus boletos, claro. Mas às vezes eu também tenho desejos para o bem da humanidade: tudo seria melhor se todo mundo desconfiasse pelo menos um pouco do embasamento anedótico, dos exemplos das redes como validadores de seus sentimentos como verdades. E se você desconfia que estou equivocado, não tem problema. Só não tente me convencer do contrário com meia dúzia de exemplos.
Apesar disso, em 2025, vamos continuar reclamando muito.
O desencantamento do articulista com o Spotify tem algo que dados começam a mostrar. Estarmos cronicamente conectados nos expõe a uma exaustão mental, dizem estudos, profissionais de saúde, a OMS. E aumenta a sensação de que tudo está indo de mal a pior.
O noticiário também não ajuda. É a economia que não engrena, o dólar que dispara, a violência que escala, as mudanças climáticas que se acentuam, uma gente que nunca morreu antes que morre.
Como o direito a desconexão é restrito – e vai se tornar cada vez mais um luxo, vamos continuar convivendo com um sentimento de que tudo está piorando.
Já que isto ficará entre nós por tempo indeterminado, infelizmente também estará entre nós o apontamento dos vilões num grande todo mundo culpando todo mundo pelo que está acontecendo. Alguns vão estar certos, outros muito equivocados, como por exemplo culpar apenas o Spotify por algo sistêmico. Mas o que vai ficar é este mal-estar generalizado e, infelizmente, a busca por curas milagrosas num novo serviço, num novo discurso, num novo herói.
Eu disse que a gente não tem mais direito à inocência. Mas vamos continuar fingindo que temos. E reclamando muito. E não indo a lugar nenhum assim.
E o que mais?
Deixando a análise de lado, eu gostaria sim de desejar ao leitor um excelente ano de 2025. Desejos não são tendências a se concretizarem, mas são honestos. Que tenhamos mais escolhas, que façamos escolhas mais sábias.
E nos vemos nos próximos posts e podcasts!
Fotos: Kelly Sikkema, Daria Nepriakhina e Patrick Fore | Unsplash